O que o papa Francisco ensina sobre a pena de morte?

Compêndio de todas as falas do papa Francisco sobre o assunto


23 de outubro de 2014:

a) Sobre a pena de morte

(i) É impossível imaginar que hoje os Estados não possam dispor de outro meio, que não seja a pena capital, para defender a vida de outras pessoas do agressor injusto.

(ii) São João Paulo II condenou a pena de morte (cf. Carta enc. Evangelium vitae, 56), como também faz o Catecismo da Igreja Católica (n. 2267).

Contudo, pode verificar-se que os Estados tirem a vida não só com a pena de morte e com as guerras, mas também quando oficiais públicos se refugiam à sombra dos poderes estatais para justificar os seus crimes. As chamadas execuções extrajudiciais ou extralegais são homicídios deliberados cometidos por alguns Estados e pelos seus agentes, com frequência feitos passar como confrontos com delinquentes ou apresentados como consequências indesejadas do uso razoável, necessário e proporcional da força para mandar aplicar a lei. Deste modo, mesmo se entre os 60 países nos quais a pena de morte está em vigor, 35 não a aplicaram nos últimos dez anos, a pena de morte, ilegalmente ou em diversos graus, aplica-se em todo o planeta.

As mesmas execuções extrajudiciais são perpetradas de maneira sistemática não só pelos Estados da comunidade internacional, mas também por entidades não reconhecidas como tais, e representam autênticos crimes.

Os argumentos contrários à pena de morte são muitos e bem conhecidos. A Igreja frisou oportunamente alguns deles, como

(i) a possibilidade da existêcia de erro judiciário

e

(ii) o uso que dela fazem os regimes totalitários e ditatoriais, que a utilizam como instrumento de supressão da dissidência política ou de perseguição das minorias religiosas e culturais, todas vítimas que para as suas respectivas legislações são «delinquentes».

Por conseguinte, todos os cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar não só pela abolição da pena de morte, legal ou ilegal, e em todas as suas formas, mas também para melhorar as condições carcerárias, no respeito pela dignidade humana das pessoas privadas da liberdade. E relaciono à prisão perpétua. Há pouco tempo, a prisão perpétua deixou de existir no Código penal do Vaticano. A prisão perpétua é uma pena de morte escondida.


20 de Março de 2015:

O Magistério da Igreja, a partir da Sagrada Escritura e da experiência milenar do Povo de Deus, defende a vida desde a concepção até à morte natural, e apoia a plena dignidade humana enquanto imagem de Deus (cf. Gn 1, 26).

A vida humana é sagrada porque desde o seu início, desde o primeiro instante da concepção, é fruto da acção criadora de Deus (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2258), e a partir desse momento, o homem, única criatura que Deus amou por si mesma, é objecto de um amor pessoal por parte de Deus (cf. Gaudium et spes, 24).

[...]

A vida, especialmente a humana, pertence unicamente a Deus. Nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus faz-se seu garante. Como ensina santo Ambrósio, Deus não quis castigar Caim com o homicídio, porque deseja o arrependimento do pecador e não a sua morte (cf. Evangelium vitae, 9).

Nalgumas ocasiões é necessário afastar proporcionalmente uma agressão em acto para evitar que um agressor cause um dano, e a necessidade de o neutralizar pode exigir a sua eliminação: é o caso da legítima defesa (cf. Evangelium vitae, 55).

(i) Sem dúvida, os pressupostos da legítima defesa pessoal não são aplicáveis ao meio social, sem risco de uma interpretação errada. Porque quando se aplica a pena de morte, mata-se pessoas não por agressões actuais, mas por danos cometidos no passado. Além disso, aplica-se a pessoas cuja capacidade de danificar não é actual mas já foi neutralizada, e encontram-se privadas da sua liberdade.

(ii) Hoje em dia a pena de morte é inadmissível, por muito grave que tenha sido o delito do condenado. (iii) É uma ofensa à inviolabilidade da vida e à dignidade da pessoa humana que contradiz o desígnio de Deus sobre o homem e a sociedade e a sua justiça misericordiosa, e impede que seja conforme com qualquer finalidade justa das penas.
(iv) Não faz justiça às vítimas, mas fomenta a vingança.

(v) Para um Estado de direito, a pena de morte representa uma falência, porque o obriga a matar em nome da justiça. Dostoevskij escreveu: «Matar quem matou é um castigo incomparavelmente maior que o crime cometido. O assassínio em virtude de uma sentença é mais assustador do que o assassínio que comete um criminoso». Nunca se alcançará a justiça matando um ser humano.

(vi) A pena de morte perde qualquer legitimidade devido à selectividade defeituosa do sistema penal e face à possibilidade de erro judiciário. A justiça humana é imperfeita, e não reconhecer a sua falibilidade pode transformá-la em fonte de injustiças.

(vii) Com a aplicação da pena capital, nega-se ao condenado a possibilidade da reparação ou correcção do dano causado; a possibilidade da confissão, com a qual o homem expressa a sua conversão interior; e a possibilidade da contrição, pórtico do arrependimento e da expiação, para chegar ao encontro com o amor misericordioso e reparador de Deus.

(viii) Além disso a pena capital é uma prática frequente à qual recorrem alguns regimes totalitários e grupos de fanáticos, para o extermínio de dissidentes políticos, de minorias, e de qualquer sujeito classificado como «perigoso» ou que pode ser considerado como uma ameaça devido ao seu poder ou consecução dos seus fins. Como nos primeiros séculos, também no presente a Igreja sofre a aplicação desta pena aos seus novos mártires.

(ix) A pena de morte é contrária ao significado da humanitas e à misericórdia divina, que devem ser modelo para a justiça dos homens. Obriga a um tratamento cruel, desumano e degradante, como o são também a angústia prévia ao momento da execução e a terrível espera entre a emissão da sentença e a aplicação da pena, uma «tortura» que, em nome do devido processo, costuma durar muitos anos, e que na antecâmara da morte muitas vezes leva à doença e à loucura.

Nalguns âmbitos debate-se acerca do modo de matar, como se se tratasse de encontrar o modo «de o fazer bem». Ao longo da história, diversos mecanismos de morte foram defendidos porque limitavam o sofrimento e a agonia dos condenados. Mas não existe uma forma humana de matar outra pessoa.

(x) Actualmente não só existem meios para reprimir o crime de modo eficaz sem privar definitivamente quem o cometeu da possibilidade de redimir-se (cf. Evangelium vitae, 27), mas

(xi) desenvolveu-se também uma maior sensibilidade moral em relação ao valor da vida humana, suscitando uma crescente repugnância da pena de morte e o apoio da opinião pública às diversas disposições que têm por finalidade a sua abolição ou a suspensão da sua aplicação (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 405).

[...]

Como disse no meu discurso de 23 de Outubro passado,

(xii) a pena de morte implica a negação do amor aos inimigos, pregada no Evangelho.

«Portanto, todos os cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar não só pela abolição da pena de morte, legal ou ilegal, e em todas as suas formas, mas também a fim de melhorar as condições carcerárias, no respeito da dignidade humana das pessoas privadas da liberdade».


MENSAGEM VÍDEO DO PAPA FRANCISCO AOS PARTICIPANTES NO VI CONGRESSO MUNDIAL CONTRA A PENA DE MORTE [OSLO, 21-23 DE JUNHO DE 2016]:

Um sinal de esperança é o aumento, na opinião pública, da oposição à pena de morte, inclusive como instrumento de legítima defesa social.

Com efeito,

(i) hoje em dia a pena de morte é inadmissível, por mais grave que tenha sido o delito do condenado.

(ii) Trata-se de uma ofensa à inviolabilidade da vida e à dignidade da pessoa humana que contradiz o desígnio de Deus sobre o homem e sobre a sociedade e a sua justiça misericordiosa, e impede o cumprimento da justa finalidade das penas.*

(iii) Não faz justiça às vítimas, mas fomenta a vingança.

(iv) O mandamento «não matarás» tem valor absoluto e abrange tanto os inocentes como os culpados.

[...]

*«Fazer justiça» não significa que se tenha de procurar o castigo por si mesmo, mas que as penas tenham como finalidade fundamental a reeducação do delinquente. A questão deve ser enquadrada na ótica de uma justiça penal aberta à esperança de reinserção do culpado na sociedade. Não há pena válida sem esperança! Uma pena fechada em si mesma, que não dê lugar à esperança, não é uma pena mas uma tortura.


11 de maio de 2017:

Este segundo caminho, explicou o Papa, serve «para compreender, para aprofundar a pessoa de Jesus, para aprofundar a fé», graças ao «Espírito Santo que Jesus nos deixou». E serve, acrescentou, também «para compreender a moral, os mandamentos». Com efeito, observou, «algo que outrora parecia normal, que não era pecado», hoje é considerado «pecado mortal»: na realidade «era pecado, mas o momento histórico não permitia que fosse entendido como tal».

Para melhor compreender este conceito, Francisco deu alguns exemplos, começando pela escravidão: «Quando íamos à escola — recordou — contavam-nos o que faziam aos escravos, eram levados de um lado para outro, vendidos noutro lugar, na América Latina eram vendidos e comprados». Hoje é considerado «pecado mortal», antes não; «aliás, alguns diziam que era possível fazer isto, porque esta gente não tinha alma!». Evidentemente, «era necessário que o tempo passasse para compreender melhor a fé, para compreender melhor a moral». E isto não significa que hoje não haja escravos: «há mais, mas pelo menos sabemos que é pecado mortal».

(i) O mesmo processo ocorreu relativamente à «pena de morte que outrora era normal. Hoje afirmamos que é inadmissível».

Pensemos também nas «guerras de religião»: hoje, disse o Pontífice, «sabemos que não só é um pecado mortal, um sacrilégio, mas até uma idolatria».


11 de setembro de 2017:

Nesta linha de pensamento, apraz-me fazer referência a um tema que deveria encontrar, no Catecismo da Igreja Católica, um espaço mais adequado e coerente com as finalidades agora expressas. Penso concretamente na pena de morte. Esta problemática não pode ficar reduzida a mera recordação histórica da doutrina, sem se fazer sobressair, por um lado, o progresso na doutrina operado pelos últimos Pontífices e, por outro, a renovada consciência do povo cristão, que recusa uma postura de anuência quanto a uma pena que lesa gravemente a dignidade humana.

Deve afirmar-se energicamente que

(i) a condenação à pena de morte é uma medida desumana que, independentemente do modo como for realizada, humilha a dignidade pessoal.

(ii) Em si mesma, é contrária ao Evangelho, porque voluntariamente se decide suprimir uma vida humana que é sempre sagrada aos olhos do Criador e cujo verdadeiro juiz e garante, em última análise, é apenas Deus.

(iii) Nunca homem algum, «nem sequer o homicida, perde a sua dignidade pessoal» ( Carta ao Presidente da Comissão Internacional contra a Pena de Morte, 20/III/2015), porque Deus é um Pai que sempre espera o regresso do filho, o qual, sabendo que errou, pede perdão e começa uma vida nova.

(iv) Por conseguinte, a ninguém se pode tirar não só a vida, mas até a própria possibilidade de um resgate moral e existencial que redunda em proveito para a comunidade.

Nos séculos passados em que se confrontava com uma pobreza dos instrumentos de defesa e a maturidade social não conhecera ainda o devido desenvolvimento positivo, o recurso à pena de morte aparecia como consequência lógica da aplicação da justiça que se devia seguir. No próprio Estado Pontifício, infelizmente, recorreu-se a este remédio extremo e desumano, descurando o primado da misericórdia sobre a justiça. Assumimos as responsabilidades do passado, reconhecendo que aqueles meios eram ditados por uma mentalidade mais legalista que cristã. A preocupação por conservar íntegros os poderes e as riquezas materiais levara a sobrestimar o valor da lei, impedindo que se chegasse a uma maior profundidade na compreensão do Evangelho. Mas, permanecer neutrais hoje perante as novas exigências de reafirmação da dignidade pessoal, tornar-nos-ia mais culpáveis.

(i) Aqui não estamos perante qualquer contradição com a doutrina do passado, porque a defesa da dignidade da vida humana desde o primeiro instante da conceção até à morte natural sempre encontrou, no ensinamento da Igreja, a sua voz coerente e autorizada.

O desenvolvimento harmónico da doutrina, porém, requer que se abandone tomadas de posição em defesa de argumentos que agora se apresentem decididamente contrários à nova compreensão da verdade cristã. Aliás, como já recordava São Vicente de Lérins, «talvez alguém pergunte: Não haverá progresso algum dos conhecimentos religiosos na Igreja de Cristo? Há, sem dúvida, e muito grande. Com efeito, quem será tão malévolo para com a humanidade e tão inimigo de Deus que pretenda impedir este progresso?» ( Commonitorium, 23.1: PL 50, 667).

(ii) Por isso é necessário reiterar que, por muito grave que possa ter sido o delito cometido, a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa.


Catecismo 2018:

2267. Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum.

(i) Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos.

(ii) Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado.

(iii) Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir.

Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que

(i) «a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa» [Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, 11 de outubro de 2017],

e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.


1º de agosto de 2018:

ONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ

Carta aos Bispos
a respeito da nova redação do n. 2267
do Catecismo da Igreja Católica
sobre a pena de morte

1. O Santo Padre Francisco, no Discurso por ocasião do vigésimo quinto aniversário da publicação da Constituição Apostólica Fidei depositum, com a qual João Paulo II promulgou o Catecismo da Igreja Católica, pediu que fosse reformulado o ensinamento sobre a pena de morte, a fim de reunir melhor o desenvolvimento da doutrina sobre este ponto nos últimos tempos.[1] Este desenvolvimento apoia-se na consciência cada vez mais clara na Igreja do respeito devido a toda vida humana. Nesta linha, João Paulo II afirmou: «Nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus Se constitui seu garante».[2]

2. É nesta perspectiva que se deve compreender a postura em relação a pena de morte, afirmada largamente no ensinamento dos pastores e na sensibilidade do povo de Deus. Se, de fato, a situação política e social do passado tornava a pena de morte um instrumento aceitável para a proteção do bem comum, hoje a consciência cada vez maior de que a dignidade de uma pessoa não se perde nem mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos, a compreensão aprofundada do sentido das sanções penais aplicadas pelo Estado e o desenvolvimento dos sistemas de detenção mais eficazes que garantem a indispensável defesa dos cidadãos, contribuíram para uma nova compreensão que reconhece a sua inadmissibilidade e, portanto, apela à sua abolição.

3. Neste desenvolvimento, o ensinamento da Carta encíclica Evangelium vitae de João Paulo II é de grande importância. O Santo Padre incluiu entre os sinais de esperança de uma nova civilização da vida «a aversão cada vez mais difusa na opinião pública à pena de morte, mesmo vista só como instrumento de “legítima defesa” social, tendo em consideração as possibilidades que uma sociedade moderna dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma que, enquanto torna inofensivo aquele que o cometeu, não lhe tira definitivamente a possibilidade de se redimir».[3] O ensinamento da Evangelium vitae foi proposto na editio typica do Catecismo da Igreja Católica. No mesmo, a pena de morte não se apresenta como uma pena proporcional à gravidade do delito, mas justifica-se somente se fosse «a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor», mesmo se de fato «os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes» (n. 2267).

4. João Paulo II interveio também em outras ocasiões contra a pena de morte, apelando seja em relação ao respeito à dignidade da pessoa quanto aos meios que a sociedade possui hoje para se defender do criminoso. Assim, na Mensagem natalícia de 1998, ele esperava «no mundo o consenso quanto a medidas urgentes e adequadas … para acabar com a pena de morte».[4] No mês successivo, nos Estados Unidos, ele repetiu: «Um sinal de esperança é constituído pelo crescente reconhecimento de que a dignidade da vida humana nunca deve ser negada, nem sequer a quem praticou o mal. A sociedade moderna possui os instrumentos para se proteger, sem negar de modo definitivo aos criminosos a possibilidade de se redimirem. Renovo o apelo lançado no Natal, a fim de que se decida abolir a pena de morte, que é cruel e inútil».[5]

5. O esforço em comprometer-se com a abolição da pena de morte continuou com os sucessivos Pontífices. Bento XVI chamou «a atenção dos responsáveis da sociedade para a necessidade de fazer todo o possível a fim de se chegar à eliminação da pena capital».[6] E sucessivamente desejou a um grupo de fiéis que «suas deliberações possam encorajar as iniciativas políticas e legislativas, promovidas em um número crescente de países, a eliminar a pena de morte e continuar os progressos substanciais realizados para adequar a lei penal tanto às exigências da dignidade humana dos prisioneiros quanto à efetiva manutenção da ordem pública».[7]

6. Nesta mesma perspectiva, o Papa Francisco reiterou que «hoje a pena de morte é inadmissível, por mais grave que seja o delito do condenado».[8] A pena de morte, quaisquer que sejam as modalidades de execução, «implica um tratamento cruel, desumano e degradante».[9] Deve também ser recusada «por causa da seletividade defeituosa do sistema penal e da possibilidade de erro judicial».[10] É neste horizonte que o Papa Francisco pediu uma revisão da formulação do Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte, de modo que se afirme que «por muito grave que possa ter sido o delito cometido, a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa».[11]

7. A nova redação do n. 2267 do Catecismo da Igreja Católica, aprovada pelo Papa Francisco, situa-se em continuidade com o Magistério anterior, levando adiante um desenvolvimento coerente da doutrina católica.[12] O novo texto, seguindo os passos do ensinamento de João Paulo II na Evangelium vitae, afirma que a supressão da vida de um criminoso como punição por um delito é inadmissível, pois atenta contra a dignidade da pessoa. Tal dignidade não se perde nem mesmo depois de ter cometido delitos gravíssimos. Chega-se também a essa conclusão levando em conta a nova compreensão das sanções penais aplicadas pelo Estado moderno, que deve antes de tudo, orientar-se para a reabilitação e reinserção social do criminoso. Enfim, dado que a sociedade de hoje possui sistemas de detenção mais eficazes, a pena de morte é desnecessária como proteção da vida de pessoas inocentes. Certamente, permanece o dever do poder público de defender a vida dos cidadãos, como sempre foi ensinado pelo Magistério e confirmado pelo Catecismo da Igreja Católica nos números 2265 e 2266.

8. Tudo isso mostra que a nova formulação do n. 2267 do Catecismo expressa um autêntico desenvolvimento da doutrina, que não está em contradição com os ensinamentos anteriores do Magistério. De fato, tais ensinamentos podem ser explicados à luz da responsabilidade primária do poder público em tutelar o bem comum, num contexto social em que as sanções penais eram compreendidas diversamente e se davam num ambiente em que era mais difícil garantir que o criminoso não pudesse repetir o seu crime.

9. Na nova redação, se acrescenta que a conscientização sobre a inadmissibilidade da pena de morte cresceu «à luz do Evangelo».[13] De fato, o Evangelho ajuda a compreender melhor a ordem da criação que o Filho de Deus assumiu, purificou e levou à plenitude. O Evangelho também nos convida à misericórdia e à paciência do Senhor, que oferece a todos, tempo para se converterem.

10. A nova formulação do n. 2267 do Catecismo da Igreja Católica quer impulsionar um firme compromisso, também através de um diálogo respeitoso com as autoridades políticas, a fim que seja fomentada uma mentalidade que reconheça a dignidade de toda vida humana e sejam criadas as condições que permitam eliminar hoje o instituto jurídico da pena de morte, onde ainda está em vigor.

O Sumo Pontífice Francisco, na Audiência concedida ao subscrito Secretário no dia 28 de junho de 2018, aprovou a presente Carta, decidida na Sessão Ordinária desta Congregação no dia 13 de junho de 2018, e ordenou a sua publicação.

Dado em Roma, na Sede da Congregação para a Doutrina da Fé, no dia 1º de agosto de 2018, Memória de Santo Afonso Maria de Ligório.

Luis F. Card. Ladaria, S.I.
Prefeito


17 de dezembro de 2018:

Tudo isto se viu refletido recentemente na nova redação do n. 2267 do Catecismo da Igreja Católica, que exprime agora o progresso da doutrina dos últimos Pontífices, assim como a mudança na consciência do povo cristão, que rejeita uma pena que lesa gravemente a dignidade humana (cf. Discurso por ocasião do XXV aniversário do Catecismo da Igreja Católica, 11 de outubro de 2017). Uma pena contrária ao Evangelho, porque significa suprimir uma vida que é sempre sagrada aos olhos do Criador e da qual só Deus é verdadeiro juiz e garante (cf. Carta ao Presidente da Comissão Internacional contra a Pena de Morte, 20 de março de 2015).

Nos séculos passados, quando faltavam os instrumentos dos quais hoje dispomos para a tutela da sociedade e ainda não tinha sido alcançado o nível atual de desenvolvimento dos direitos humanos, o recurso à pena de morte apresentava-se nalgumas ocasiões como uma consequência lógica e justa. Até no Estado Pontifício se recorrera a esta forma desumana de punição, ignorando o primado da misericórdia sobre a justiça.

É por isso que a nova redação do Catecismo dá a entender que devemos assumir a nossa responsabilidade pelo passado e reconhecermos que a aceitação deste tipo de pena foi consequência de uma mentalidade de uma época mais legalista do que cristã, que sacralizou o valor de leis carentes de humanidade e de misericórdia. A Igreja não podia permanecer numa posição neutral diante das exigências atuais de reafirmação da dignidade pessoal.

(i) A reforma do texto do Catecismo no ponto dedicado à pena de morte não implica qualquer contradição com o ensinamento do passado, porque a Igreja sempre defendeu a dignidade da vida humana. Todavia, o desenvolvimento harmonioso da doutrina impõe a necessidade de refletir no Catecismo o facto que, permanecendo firmemente a gravidade do delito cometido, a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é sempre inadmissível porque lesa a inviolabilidade e a dignidade da pessoa.

Ao mesmo tempo, o Magistério da Igreja acredita que as condenações perpétuas, que privam da possibilidade de uma redenção moral e existencial, a favor do condenado e a favor da comunidade, são uma forma de pena de morte escondida (cf. Discurso a uma delegação da Associação Internacional de Direito Penal, 23 de outubro de 2014). Deus é um Pai que espera sempre o regresso do filho, o qual, sabendo que errou, pede perdão e começa uma vida nova. Por conseguinte, a ninguém se pode tirar a vida nem a esperança da sua redenção e reconciliação com a comunidade.

Como aconteceu no seio da Igreja, assim é necessário que no concerto das nações se assuma um compromisso semelhante. O direito soberano de todos os países a definir a própria ordenação jurídica não pode ser exercido em contradição com as obrigações que lhes correspondem em razão do direito internacional, nem pode representar um obstáculo ao reconhecimento universal da dignidade humana.

As resoluções da Organização das Nações Unidas sobre a moratória do uso da pena de morte, que têm como finalidade suspender a aplicação da pena capital nos países membros, são um caminho que é preciso percorrer, sem que isto signifique desistir da iniciativa da abolição universal.

Nesta ocasião desejo convidar todos os Estados que não aboliram a pena de morte mas que não a aplicam, a continuar a aderir a este compromisso internacional e a fazer com que a moratória não seja aplicada só à execução da pena mas também à imposição das condenações à morte. A moratória não pode ser vivida pelo condenado como um mero prolongamento da espera da sua execução.

Peço aos Estados que continuam a aplicar a pena de morte que adotem uma moratória em vista da abolição desta forma cruel de punição. Compreendo que para chegar à abolição, que é o objetivo desta causa, em certos contextos pode ser necessário passar por complexos processos políticos. A suspensão das execuções e a redução dos delitos punidos com a pena capital, assim como a proibição deste tipo de punição para menores de idade, mulheres grávidas ou pessoas com deficiência mental ou intelectual, são objetivos mínimos pelos quais os líderes de todo o mundo devem comprometer-se.


26 de novembro de 2019:

e, em seguida,

(i) a pena de morte, acerca da qual se disse claramente que não é moral, não se pode aplicar.

Creio que isto caminha a par e passo com uma consciência que se desenvolve cada vez mais. Por exemplo, alguns países não se atrevem a aboli-la por problemas políticos, mas fazem a moratória. A prisão perpétua, por exemplo, é uma maneira de a declarar, sem o dizer. O problema, porém, é que a condenação deve visar sempre a reinserção: uma condenação sem «janelas» de horizonte não é humana. Inclusive a prisão perpétua: deve-se pensar como este preso se pode reinserir, dentro ou fora. Mas é sempre preciso o horizonte, a reinserção. A senhora poderá observar: mas há condenados malucos, por um problema de doença, de loucura, de incorrigibilidade por assim dizer genética. Contudo é 4 preciso procurar o modo de lhe permitirem ao menos realizar coisas que os façam sentir-se pessoa. Hoje as prisões, em muitas partes do mundo, estão superlotadas, são depósitos de carne humana que frequentemente, em vez de crescer em saúde, se corrompe em consequência disso mesmo.

(ii) Devemos lutar contra a pena de morte; acabar com ela pouco a pouco.

Um dos casos que me alegram é aquele em que Estados, países, decidem: suspendamo-la. No ano passado, falei com o governador dum Estado e ele, antes de deixar o cargo, tornou quase definitiva tal suspensão. São passos, passos duma consciência humana. Outros países, pelo contrário, ainda não conseguiram enquadrar o problema na linha da humanidade.


Fratelli Tutti 2020:

A pena de morte

263. Há outra maneira de eliminar o outro, não destinada aos países, mas às pessoas: é a pena de morte. São João Paulo II declarou, de forma clara e firme, que a mesma é inadequada no plano moral e já não é necessária no plano penal.[246] Não é possível pensar num recuo relativamente a esta posição. Hoje, afirmamos com clareza que «a pena de morte é inadmissível»[247] e a Igreja compromete-se decididamente a propor que seja abolida em todo o mundo.[248]

264. No Novo Testamento, ao mesmo tempo que se pede aos indivíduos para não fazerem justiça por si próprios (cf. Rm 12, 19), reconhece-se a necessidade de as autoridades imporem penas àqueles que praticam o mal (cf. Rm 13, 4; 1 Ped 2, 14). Com efeito, «a vida em comum, estruturada em volta de comunidades organizadas, precisa de regras de convivência cuja livre violação exige uma resposta adequada».[249] Isto implica que a autoridade pública legítima possa e deva «infligir penas proporcionadas à gravidade dos delitos»[250] e que se garanta ao poder judiciário «a necessária independência no âmbito da lei».[251]

265. Desde os primeiros séculos da Igreja, alguns manifestaram-se claramente contrários à pena de morte. Por exemplo, Lactâncio defendia que «não há qualquer distinção que se possa fazer: sempre será crime matar um homem».[252] O Papa Nicolau I exortava: «Esforçai-vos por livrar da pena de morte não só cada um dos inocentes, mas também todos os culpados».[253] E, por ocasião do julgamento de alguns homicidas que assassinaram dois sacerdotes, Santo Agostinho pediu ao juiz para não tirar a vida aos assassinos, e justificava-o da seguinte maneira: «Não que pretendamos com isto impedir que se tire a indivíduos celerados a liberdade de cometer delitos, mas queremos que, para esse fim, seja suficiente que, deixando-os vivos e sem mutilá-los em parte alguma do corpo, aplicando as leis repressivas, eles sejam afastados da sua agitação insana para serem reconduzidos a uma vida salutar e pacífica, ou que, retirados das suas ações perversas, sejam ocupados nalgum trabalho útil. Também isto é uma condenação, mas quem não entenderia que se trata mais dum benefício que dum suplício, uma vez que não se deixa campo livre à audácia da ferocidade, nem se retira o remédio do arrependimento? (...) Indigna-te contra a iniquidade, mas sem esqueceres a humanidade; não dês livre curso à volúpia da vingança contra as atrocidades dos pecadores, mas pretende antes curar as suas feridas».[254]

266. Os medos e os rancores levam facilmente a entender as penas de maneira vingativa, se não cruel, em vez de as considerar como parte dum processo de cura e reinserção na sociedade. Hoje, «tanto por parte de alguns setores da política como de certos meios de comunicação, por vezes incita-se à violência e à vingança, pública e privada, não só contra quantos são responsáveis por ter cometido delitos, mas também contra aqueles sobre os quais recai a suspeita, fundada ou não, de ter infringido a lei. (...) Há por vezes a tendência a construir deliberadamente inimigos: figuras estereotipadas, que concentram em si todas as caraterísticas que a sociedade sente ou interpreta como ameaçadoras. Os mecanismos de formação destas imagens são os mesmos que, outrora, permitiram a expansão das ideias racistas».[255] Isso tornou particularmente perigoso o costume crescente que há, nalguns países, de recorrer a prisões preventivas, a reclusões sem julgamento e especialmente à pena de morte.

267. Quero assinalar que «é impossível imaginar que hoje os Estados não possam dispor de outro meio, que não seja a pena capital, para defender a vida de outras pessoas do agressor injusto». De particular gravidade se revestem as chamadas execuções extrajudiciais ou extralegais, que «são homicídios deliberados cometidos por alguns Estados e pelos seus agentes, com frequência feitos passar como confrontos com delinquentes, ou apresentados como consequências indesejadas do uso razoável, necessário e proporcional da força para manter e aplicar a lei».[256]

268. «Os argumentos contrários à pena de morte são muitos e bem conhecidos. A Igreja frisou oportunamente alguns deles, como a possibilidade da existência de erro judicial e o uso que dela fazem os regimes totalitários e ditatoriais, que a utilizam como instrumento de supressão da dissidência política ou perseguição das minorias religiosas e culturais, todas vítimas que, para as suas respetivas legislações, são “delinquentes”. Por conseguinte, todos os cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar não só pela abolição da pena de morte, legal ou ilegal, em todas as suas formas, mas também para melhorar as condições carcerárias, no respeito pela dignidade humana das pessoas privadas da liberdade. E relaciono isto com a prisão perpétua. (...) A prisão perpétua é uma pena de morte escondida».[257]

269. Lembremos que «nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus Se constitui seu garante».[258] A rejeição firme da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a dignidade inalienável de todo o ser humano e aceitar que tenha um lugar neste universo. Visto que não o nego ao pior dos criminosos, não o negarei a ninguém, darei a todos a possibilidade de compartilhar comigo este planeta, apesar do que nos possa separar.

270. Aos cristãos que hesitam e se sentem tentados a ceder a qualquer forma de violência, convido-os a lembrar este anúncio do livro de Isaías: «transformarão as suas espadas em relhas de arado» (2, 4). Para nós, esta profecia encarna em Jesus Cristo, que, ao ver um discípulo excitado pela violência, lhe disse com firmeza: «Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada, morrerão à espada» (Mt 26, 52). Era um eco daquela antiga admoestação: «Ao homem, pedirei contas da vida do homem, seu irmão. A quem derramar o sangue do homem, pela mão do homem será derramado o seu» (Gn 9, 5-6). Esta reação de Jesus, que brotou espontaneamente do seu coração, supera a distância dos séculos e chega até hoje como um apelo incessante.

Dignitas Infinita 2024:

É necessário mencionar aqui o tema da pena de morte[55], que

(i) também viola a dignidade inalienável de toda pessoa humana para além de toda circunstância.

Deve-se, ao contrário, reconhecer que

(ii) «a decidida rejeição da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a inalienável dignidade de cada ser humano e admitir que tenha um lugar neste mundo, já que se não o nego ao pior dos criminosos, não o negarei a ninguém, darei a todos a possibilidade de partilhar comigo este planeta, malgrado o que nos possa separar».[56]


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