Adão e Eva, um conto de fadas refutado pela evolução?

Texto original publicado em 12 de dezembro de 2024, em Fé e Ciência, por Matthieu Lavagna.

Contexto

Muitos católicos mal formados do século XXI ficam chocados ao descobrir que a Igreja ensina a existência de Adão e Eva. Frequentemente ouvem-se frases do tipo: “Não, o Gênesis é um texto simbólico, não deve ser tomado ao pé da letra, Adão e Eva são personagens fictícios que simbolizam nossa humanidade.” A primeira parte da frase está correta. O Gênesis, dado o seu gênero literário, não deve ser interpretado inteiramente ao pé da letra. A criação, por exemplo, é contada em grande parte sob a forma de dias simbólicos. No entanto, concluir daí que tudo no Gênesis é simbólico e que nada é histórico é um passo que a Igreja não deu. De fato, ela afirma a existência histórica de Adão e Eva, enquanto ancestrais da humanidade. O Catecismo diz o seguinte (§ 375): “A Igreja, interpretando de modo autêntico o simbolismo da linguagem bíblica à luz do Novo Testamento e da Tradição, ensina que os nossos primeiros pais, Adão e Eva, foram constituídos num estado de santidade e de justiça originais".

Recordação da doutrina

A doutrina é, em substância, a seguinte: Adão e Eva existiram e realmente cometeram o pecado original (simbolizado pela maçã e pela árvore do conhecimento no jardim do Éden). Trata-se, na realidade, de um pecado de orgulho: nossos primeiros pais escolheram livremente separar-se de Deus, deixando-se seduzir pela voz de Satanás, que lhes propunha uma alternativa em que poderiam emancipar-se da autoridade divina e decidir por si mesmos o que era o bem e o mal. O Papa Paulo VI recorda isso solenemente em seu Credo redigido após o Concílio Vaticano II, no qual retoma os elementos importantes do Concílio de Trento:

"Cremos que todos pecaram em Adão; isto significa que a culpa original, cometida por ele, fez com que a natureza, comum a todos os homens, caísse num estado no qual padece as consequências dessa culpa. Tal estado já não é aquele em que no princípio se encontrava a natureza humana em nossos primeiros pais, uma vez que se achavam constituídos em santidade e justiça, e o homem estava isento do mal e da morte. Portanto, é esta natureza assim decaída, despojada de dom da graça que antes a adornava, ferida em suas próprias forças naturais e submetidas ao domínio da morte, é esta que é transmitida a todos os homens. Exatamente neste sentido, todo homem nasce em pecado. Professamos pois, segundo o Concílio de Trento, que o pecado original é transmitido juntamente com a natureza humana, pela propagação e não por imitação, e se acha em cada um como próprio."

Isso é incompatível com a evolução?

O Papa Pio XII já observava, em 1950, que uma certa forma de teoria da evolução bem compreendida não era estritamente incompatível com a fé:

“Por isso o magistério da Igreja não proíbe que nas investigações e disputas entre homens doutos de ambos os campos se trate da doutrina do evolucionismo, que busca a origem do corpo humano em matéria viva preexistente (pois a fé nos obriga a reter que as almas são diretamente criadas por Deus)" (Humani Generis, 36).

Em 1996, o papa São João Paulo II declarou à Pontifícia Academia das Ciências:

"Hoje, cerca de meio século após a publicação da Encíclica, novos conhecimentos conduzem a não considerar mais a teoria da evolução uma mera hipótese. É digno de nota o fato de que esta teoria tenha se imposto progressivamente à atenção dos pesquisadores, em decorrência de uma série de descobertas feitas nas diversas disciplinas do saber."

E o Papa acrescenta:

“Pio XII havia sublinhado este ponto essencial: se o corpo humano tem sua origem na matéria viva que existia antes dele, a alma espiritual é imediatamente criada por Deus, “animas enim a Deo immediate creari catholica fides nos retinere iubet” (Pio XII, Humani Generis, AAS 42 [1950] 575). Consequentemente, as teorias da evolução que, em função das filosofias que as inspiram, consideram o espírito como emergente das forças da matéria viva ou como um simples epifenômeno dessa matéria, são incompatíveis com a verdade sobre o homem. Elas são, além disso, incapazes de fundamentar a dignidade da pessoa.”

Em outras palavras, a fé cristã nos ensina que a alma humana não provém da evolução e que ela foi imediatamente infundida por Deus em um momento determinado da história. Foi apenas a partir do momento em que Deus infundiu essa alma que Adão e Eva começaram a existir, tornando-se, por esse próprio fato, o primeiro homem e a primeira mulher da humanidade. Teologicamente, é portanto falso dizer que o Homem, no sentido próprio, descende do macaco. Em contrapartida, é possível sustentar que, biologicamente, o corpo humano evoluiu da espécie Homo sapiens antes que a alma lhe fosse infundida. Somente a partir dessa infusão pode-se dizer que o primeiro homem e a primeira mulher foram criados. Com efeito, na antropologia cristã, o ser humano é verdadeiramente uma pessoa apenas a partir do momento em que corpo, alma e espírito estão unificados. 

As objeções materialistas contemporâneas

Infelizmente, parece que esse tipo de distinção conceitual escapou aos cientistas modernos, que ainda acreditam que a existência da alma é incompatível com a evolução. Alguns ateus modernos acreditam que a ciência agora pode se pronunciar em favor da inexistência da alma. Este é o caso de Yuval Noah Harari, que, em seu best-seller Homo Deus, ousou afirmar ao grande público o seguinte:

“As descobertas científicas recentes contradizem categoricamente o mito monoteísta (da alma).”

Como ele justifica sua tese? Bem, simplesmente afirmando que os laboratórios científicos não conseguiram detectá-la:

“As experiências em laboratório minam [...] a parte mais importante do mito monoteísta, ou seja, que os humanos teriam uma alma. Os pesquisadores submeteram o Homo Sapiens a dezenas de milhares de experiências cada vez mais bizarras, vasculharam todos os cantos de nosso coração e cérebro. Até agora, não descobriram nenhuma centelha mágica. Não existe nenhuma prova científica de que, ao contrário dos porcos, o Sapiens tenha uma alma.”  

(Yuval Noah Harari, Homo Deus : une brève histoire de l’avenir, Albin Michel, 2017, p. 118-119.)

Análise deslumbrante! Como se a alma pudesse ser detectada através da interação molecular de nossas células ou por sinais elétricos de nossos cérebros! É impressionante ver que tais bobagens possam ser escritas por pessoas com doutorado. Segundo ele, a alma seria uma entidade material palpável como as outras, capaz de ser detectada empiricamente em um laboratório. Mas qual cristão, exatamente, já defendeu tal concepção da alma? Ninguém. É óbvio que, do ponto de vista cristão, a alma humana, não sendo material, não pode ser objeto de tal investigação. Aquele que diz que a alma humana não existe porque não pôde ser detectada pelo método empírico em um laboratório comete o mesmo sofisma que aquele que afirma que não existem pedaços de plástico sob o solo porque o detector de metais não conseguiu encontrá-los.

Harari continua com suas acusações infundadas:

“Se as ciências da vida duvidam da existência da alma, não é apenas por falta de provas: é também porque a própria ideia de alma contradiz os princípios fundamentais da evolução. Essa contradição explica o descontrole de ódio que a teoria da evolução inspira nos monoteístas fervorosos” (p. 118).

Interessante. Devemos concluir que os papas, desde Pio XII, não são monoteístas fervorosos? O que Harari diz não é sério e revela um profundo desconhecimento do que o cristianismo ensina sobre a criação. Em que afirmar que Deus teria escolhido infundir uma alma (imaterial) em um corpo humano em determinado momento da história seria contrário à evolução? É absurdo, do ponto de vista epistemológico, sugerir uma incompatibilidade entre os dois, já que a ciência, em princípio, é incapaz de se pronunciar sobre a existência da alma. Portanto, a existência de Adão e Eva enquanto pessoas unificadas é completamente compatível com a teoria da evolução.

Mas quando remonta a existência deles? Eles existiram antes ou depois do homem de Neandertal ou da espécie Homo sapiens? Alguns, como William Lane Craig, fizeram pesquisas sérias sobre esse assunto (Pode-se ler seu excelente livro, In Quest of the Historical Adam: A Biblical and Scientific Exploration, publicado em setembro de 2021.), mas, por prudência, nos contentaremos em dizer que não podemos afirmar nada com certeza. O que sabemos pela Revelação é que, em um determinado momento da história, Deus escolheu criar o primeiro homem, Adão, infundindo-lhe uma alma espiritual. Isso, a ciência não é capaz de estudar, pois ela só estuda o que é material. A Igreja, portanto, tem o direito de se pronunciar sobre a origem da humanidade nesse sentido, pois não sai de seu domínio epistemológico ao se expressar sobre a alma humana. A menos que se seja completamente materialista, seria absurdo pensar que a ciência possa se pronunciar sobre a origem do homem em um sentido amplo, pois ela não tem acesso à alma humana.

Esse raciocínio já havia sido proposto pela Comissão Teológica Internacional em 2004:

"70. No que tange à criação imediata da alma humana, afirma a teologia católica que ações particulares de Deus produzem efeitos que transcendem a capacidade das causas criadas que agem segundo a sua natureza. O recurso à causalidade divina para preencher vazios autenticamente causais, e não para dar resposta ao que ainda é inexplicado, não significa utilizar a obra divina para preencher “buracos” do saber científico (dando assim lugar ao assim chamado “Deus tapa-buracos”). As estruturas do mundo podem ser vistas como abertas à atuação divina não desagregadora enquanto são causa direta de certos acontecimentos no mundo. A teologia católica afirma que o aparecimento dos primeiros membros da espécie humana [...] representa um evento que não se presta a uma explicação puramente natural e que se pode adequadamente atribuir à intervenção divina. Agindo indiretamente através de cadeias causais que operam desde o início da história do cosmos, Deus criou as condições prévias para aquilo que o Papa João Paulo II chama de “um salto ontológico [...], o momento de transição para o espiritual”. Se a ciência pode estudar essas cadeias causais, cabe à teologia colocar este relato da específica criação da alma humana no interior do grande plano de Deus Uno e Trino de compartilhar a comunhão da vida trinitária com pessoas humanas criadas do nada à imagem e semelhança de Deus e que, em seu nome e em conformidade com seu plano, exercem criativamente o serviço e a soberania sobre o universo físico."

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