A Única Igreja de Cristo: Introdução
POUCOS TÓPICOS NA história da teologia provocaram tanta controvérsia quanto a questão da relação entre a Igreja de Cristo e as múltiplas constituências de uma cristandade dividida. O ápice dessa controvérsia gira em torno dos ensinamentos eclesiológicos do Concílio Vaticano II.
Desde aquele momento sinalizador, os teólogos têm discutido ininterruptamente sobre o significado pretendido pelas declarações do Concílio e sobre o vocabulário específico referente às relações entre a Igreja de Cristo, a Igreja Católica e as comunidades não católicas.
Como é bem conhecido, o Concílio abordou questões concernentes não somente à realização distintivamente católica do mistério eclesial, mas também ao modo como esse mistério se relaciona com outras comunhões cristãs e com as sociedades humanas em geral. Adotou também uma terminologia específica e diferenciada para exprimir diferentes aspectos da realização de facto multivalente do mistério eclesial de Cristo.
Essa terminologia inclui um conjunto de termos aplicados unicamente à Igreja Católica, juntamente com outros que são aplicados às comunidades não católicas, termos denotando, por exemplo, “plenitude”, “perfeição” e “universalidade”, de um lado, e “parcialidade”, “deficiência” e “derivação”, de outro. Assim, o Concílio fala, por exemplo, da única e indivisível Igreja de Cristo como “subsistindo” na Igreja Católica, e da presença dentro das cristandades não católicas de “elementos de santificação e de verdade” (1) ; e da plenitude dos meios de salvação dentro da Igreja Católica, e da possibilidade de que as comunhões não católicas sirvam como meios de salvação (2). O que emerge é uma teologia nuançada da Igreja apresentando a Igreja Católica em relação a seus irmãos separados em termos de profunda unidade e distinção irredutível.
A necessidade de reconhecer simultaneamente cada uma dessas características, e a tensão e as prioridades e posterioridades metafísicas implicadas por sua conjunção, já evidencia as dificuldades enfrentadas pelo teólogo que deseja expor a eclesiologia do Concílio. Sua compreensão da estatura eclesial da Igreja Católica, do status eclesial das comunidades cristãs não católicas, e da relação intrincada entre elas — marcada por diferença essencial, aspectos em comum e dependência causal — deve ser inteiramente averiguada. Tal é o objetivo próximo do presente volume. Nas páginas que seguem, examinarei primeiro a compreensão conciliar do modo único e irrepetível pelo qual a Igreja de Cristo existe na Igreja Católica; depois, sua compreensão do caráter eclesial das comunidades cristãs não católicas; em seguida, o dinamismo causal que vincula essas comunidades à Igreja Católica; e, por fim, o modo pelo qual os nomes teológicos “igreja” e “eclesialidade” podem ser aplicados tanto à Igreja Católica quanto às comunhões não católicas.
Os dois primeiros capítulos exploram as várias expressões assumidas pelos Padres conciliares em seu esforço de relacionar a Igreja de Cristo à Igreja Católica. Aqui explico o significado da escolha conciliar da frase “subsistit in” em vez das alternativas propostas, “est” e “adest.” O primeiro capítulo detalha os possíveis significados de se conjugar a Igreja de Cristo e a Igreja Católica por meio do uso de “est” ou “adest,” evidenciando as forças e limitações do primeiro e as deficiências do segundo, enquanto o segundo capítulo empreende uma investigação sistemática do uso conciliar do verbo “subsistere,” examinando sua elasticidade filosófica, utilidade teológica e significados específicos dentro dos diversos contextos conciliares. Entre os frutos dessa investigação está uma demonstração da validade perene da formulação “est” e sua compatibilidade tanto com a linguagem do “subsistit” quanto com a afirmação de elementos de santificação além dos limites visíveis da Igreja Católica. Ao mesmo tempo, o segundo capítulo ressalta as vantagens teológicas da expressão “subsistit,” provando que, embora a eclesiologia do Vaticano II não introduza mudança doutrinal alguma na autocompreensão tradicional da Igreja, ela representa um desenvolvimento da mesma.
Estreitamente relacionada ao uso preciso e teologicamente proveitoso de “subsistere” por parte do Concílio está sua doutrina a respeito da presença, dentro das comunidades cristãs separadas, de “elementos” da única Igreja de Cristo. O capítulo três examina esse ensinamento e esclarece o que se entende ao afirmar a presença de elementos de santificação e de verdade nas comunhões não católicas. Aí abordo a dignidade e a profunda unidade de todas as comunhões cristãs em razão da participação no mistério eclesial. Ao mesmo tempo, mostro que o tipo de eclesialidade que é atribuído às cristandades separadas com base nos referidos “elementos” é essencialmente distinto daquele da Igreja Católica e implica uma relação de dependência em relação a esta última. O modo pelo qual o ser e as propriedades da Igreja são realizados entre as cristandades não católicas, e as limitações correspondentes de sua eficácia salutar, também são abordados.
O capítulo quatro desenvolve esses temas ainda mais por meio de uma análise sistemática dos parâmetros causais que definem a relação entre as comunidades não católicas e a Igreja Católica. Ilustro como a Igreja Católica está presente dentro de e operante sobre toda outra comunidade de fé, de tal modo que ela se relaciona com elas na ordem da salvação como causa exemplar, causa eficiente e causa final, e, de certo modo, até mesmo como causa formal. Essa clarificação da primazia causal da Igreja Católica tanto confirma quanto fornece a ratio para a visão conciliar da Igreja Católica como o “sacramento universal de salvação” e o “meio de salvação que a todos abrange.” (3) Confirma também o ensinamento do Concílio sobre, e garante metafisicamente, a unidade e a unicidade da Igreja de Cristo (4). Finalmente, devido à natureza da preeminência da Igreja Católica entre as comunidades eclesiais e ao modo qualitativamente transcendente pelo qual a Igreja de Cristo é realizada nela, segue-se que o título “Igreja” pertence a ela de modo singular, não podendo ser afirmado de nenhuma outra comunidade de fé.
Assim, os capítulos quinto e sexto retomam o uso, por parte do Concílio, dos nomes “igreja” e “comunidade eclesial” (5) com referência às comunhões cristãs separadas, explicando a diferença entre eles, bem como o modo distinto pelo qual são aplicados às comunidades não católicas e à Igreja Católica. Aí mostro que essa diferenciação terminológica posterior está enraizada na divisão ontológica irredutível entre o modo segundo o qual o mistério eclesial é realizado na Igreja Católica e seu modo de realização além de seus limites visíveis, demonstrando que esses títulos se aplicam a diferentes comunidades eclesiais em sentido estritamente analógico. Ressaltar essa analogicidade leva o livro ao seu encerramento, reforçando a tese mantida desde o início de que a Igreja de Cristo é una, indivisível, única e irrepetível, e que sua única realidade existe concretamente como a Igreja Católica e em todo lugar onde seu ser ou operação possam ser encontrados.
É minha esperança, finalmente, que este estudo ajude a encerrar a questão disputada de se a eclesiologia do Concílio Vaticano II representa uma ruptura com a do magistério anterior.
Apesar das visões amplamente polarizadas sobreo tema, há na literatura atual um reconhecimento crescente de que uma hermenêutica de descontinuidade no que concerne à eclesiologia do Concílio não é nem correta (teológica ou historicamente) nem inteiramente honesta (ao menos com respeito às fontes).
Os resultados deste estudo devem oferecer uma contribuição positiva a esse reconhecimento, ao mesmo tempo em que enfrentam diversas falsificações da eclesiologia oficial da Igreja. Enfatizar o ensinamento conciliar sobre a diferença essencial e a relação vertical que existe entre a Igreja Católica e as comunhões não católicas é necessário não apenas para apresentar um quadro acurado do pensamento do Vaticano II, mas para contrapor-se às exagerações unilaterais de teólogos e grupos ecumênicos que se recusam obstinadamente a aceitar a orientação interpretativa do magistério. Este último tem se pronunciado frequentemente a respeito das passagens e frases disputadas da Lumen gentium, Unitatis redintegratio e de outros documentos conciliares. (6)
Isto, porém, não impediu alguns católicos e até mesmo consultores do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos de advogar, contrariamente ao magistério, interpretações achatadas da eclesiologia do Concílio que distorcem seu verdadeiro ensinamento com uma série de propostas inaceitáveis, como, por exemplo, uma verdadeira mudança na doutrina eclesial da Igreja, a identidade não exclusiva entre a Igreja de Cristo e a Igreja Católica, a incongruência parcial entre a Igreja Católica histórica e a Igreja de Cristo, a pertença comum ou a constituição conjunta do Corpo de Cristo por parte das comunidades cristãs, pretensões iguais a origens ou constituição apostólica, entre outras. (7)
Se estas páginas puderem servir em alguma medida como corretivo a essas distorções e ajudar a recuperar o verdadeiro sentido do ensinamento do Concílio sobre a Igreja, sinalizando tanto sua continuidade com o passado quanto seu autêntico avanço doutrinal, então terão cumprido seu propósito.
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Talvez seja melhor notar aqui que o tipo de identidade entre a Igreja de Cristo e a Igreja Católica afirmado logo acima — quando se declarou que a Igreja indivisível de Cristo existe concretamente como a Igreja Católica e onde quer que ela esteja presente — é uma identidade simpliciter. Como demonstro abaixo, essa identidade não pode ser atribuída a nenhuma outra comunidade cristã: somente a Igreja Católica pode ser dita como sendo a Igreja de Cristo, e a Igreja de Cristo é idêntica somente à Igreja Católica.
Esta é a base para um conceito importante na eclesiologia e no ecumenismo, a saber, “identidade exclusiva”, um conceito que (quando corretamente compreendido) é representativo do ensinamento oficial da Igreja sobre a relação entre a Igreja de Cristo e a Igreja Católica. Infelizmente, essa expressão comporta certa ambiguidade, em razão da qual pode ser usada de dois modos significativamente diferentes, cujas diferenças são por vezes ignoradas. Por um lado, “identidade exclusiva” pode ser tomada no sentido de que uma relação de identidade (com a Igreja de Cristo) pertence exclusivamente a um sujeito (a Igreja Católica). Este é o significado básico da expressão tal como legitimamente empregada no Catolicismo. Por outro lado, poderia ser entendida adicionalmente como significando que a identidade reconhecida (entre a Igreja de Cristo e a Igreja Católica) exclui que as comunidades de fé não católicas estejam incluídas no mistério da Igreja, ou que qualquer coisa pertencente a elas esteja incluída nesse mistério, ou que elas incluam algo que a ele pertença. Este último e mais forte sentido, como também demonstro, é inadmissível do ponto de vista teológico, ausente da tradição e incompatível com a eclesiologia do Vaticano II.
É crucial, além disso, ter em mente que o primeiro sentido da expressão, testemunhado ao longo da tradição, não implica as exclusões associadas à expressão tomada naquele último modo. Por si mesma, e com exclusão de qualquer outra instituição, a Igreja Católica é simplesmente idêntica à Igreja de Cristo ao mesmo tempo em que está operativamente presente e interior a toda outra sociedade religiosa autêntica; consequentemente, muitas coisas próprias da Igreja de Cristo são verificadas entre as comunidades cristãs separadas, todas as quais são, de diferentes modos, penetradas e abarcadas pelo único mistério eclesial católico (8).
A exclusividade da identidade da Igreja Católica com a Igreja de Cristo resulta, assim, numa inclusividade com relação a seus irmãos separados, uma inclusividade multifacetada, na qual a Igreja Católica vive e opera dentro deles, e as riquezas eclesiais dessas comunidades são interiores ao seu próprio mistério (9). Quando, portanto, como comumente ocorre no ecumenismo, se encontra controvérsia sobre a noção de identidade exclusiva, é necessário discernir qual sentido está em jogo, a fim de apreciar o que está sendo defendido quando é afirmado, e o que é atacado quando é rejeitado.
Os adversários da identidade exclusiva propõem a “identidade não exclusiva” como uma alternativa. Mas esta expressão é igualmente ambígua. Ela poderia ser tomada no sentido de, como ocorre para muitos ecumenistas, que a identidade com a Igreja de Cristo não é exclusiva da Igreja Católica, de tal modo que outras comunidades cristãs também são identificáveis com ela, todas sendo, de modos diversos, partes constitutivas (10) de um todo maior.
Alternativamente (embora isto não seja o que é ordinariamente pretendido por seus proponentes), poderia ser tomada no sentido meramente de que a identidade entre a Igreja de Cristo e a Igreja Católica não exclui tais coisas como a presença da Igreja de Cristo entre os não católicos, ou a existência de suas propriedades dentro deles, ou a assimilação de aspectos da vida das comunidades não católicas e de seus membros dentro da Igreja Católica.
Mais uma vez, é necessário distinguir o sentido em que a expressão é empregada. O primeiro sentido de “identidade não exclusiva” descrito acima é uma impossibilidade teológica, e é inconsistente com o único sentido aceitável de “identidade exclusiva.” Mas o segundo sentido de “identidade não exclusiva” é perfeitamente ortodoxo. Com efeito, como aludido acima, o sentido ortodoxo de “identidade exclusiva” assegura de fato certa inclusividade e é, portanto, uma “identidade exclusiva não-exclusiva.”
Nas páginas que seguem, falarei e argumentarei em favor da “identidade exclusiva” apenas no primeiro (e mais fraco) dos dois sentidos indicados acima. Assim compreendida, a noção não é apenas dogmaticamente inatacável, mas eminentemente consonante com a versão aceitável da identidade não exclusiva, e, com efeito, como mostrarei, a própria condição para numerosos vínculos de união pelos quais a vida e a ação da Igreja Católica estão incluídas dentro das comunidades não católicas, e seu aparato salutar, ações e efeitos dentro dela.
(1) Ver Lumen Gentium, 8.
(2) Ver Unitatis Redintegratio, 3.
(3) Ver Lumen Gentium, 48; Unitatis Redintegratio, 3.
(4) Ver, em particular, Lumen Gentium, 8.
(5) Ver Unitatis Redintegratio, c. III (especialmente, a. 13, 19 e 22).
(6) Exemplos notáveis da Congregação para a Doutrina da Fé (doravante CDF) incluem (em ordem cronológica): Notificação sobre o livro do Padre Leonardo Boff: “A Igreja: Carisma e Poder”: AAS 77 (1985): 758–759; Declaratio de Iesu Christi atque Ecclesiae unicitate et universalitate salvifica: AAS 92 (2000): 742–765; Responsa ad quaestiones de aliquibus sententiis ad doctrinam de Ecclesia pertinentibus: AAS 99 (2007): 604–608; Comentário ao Documento “Respostas a Algumas Questões sobre Certos Aspectos da Doutrina sobre a Igreja,” Notitiae 43 (2007): 398–415.
(7) Exemplos notáveis incluem: Wolfgang Thönissen, “Über Einheit und Wahrheit der Kirche: Zum Verständnis des ‘Subsistit’ im gegenwärtigen ökumenischen Disput,” Catholica 61 (2007): 230–240; Angelo Maffeis, Ecumenical Dialogue, trad. L. F. Fuchs (Collegeville, MN: Liturgical Press, 2005), 25–29; A Federação Luterana Mundial e o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, From Conflict to Communion: Lutheran-Catholic Commemoration of the Reformation in 2017 (Leipzig: Evangelische Verlagsanstalt GmbH e Bonifatius GmbH Druck, 2013). A declaração recente de uma Força-Tarefa Católico-Luterana dos EUA endossada pelo Comitê dos Bispos para Assuntos Ecumênicos e Inter-religiosos, Declaration on the Way: Church, Ministry and Eucharist (Minneapolis, MN: Augsburg Fortress, 2015) (doravante Declaration on the Way) sofre de uma leitura igualmente “branda” do Concílio; veja, a esse respeito, Christian D. Washburn, “Doctrine, Ecumenical Progress, and Problems with Declaration on the Way: Church, Ministry, and Eucharist,” Pro Ecclesia 26 (2017): 59–80. Representantes principais dessas ideias são referenciados, e o conteúdo de sua postura eclesiológica refutado, nos dois primeiros capítulos deste livro.
(8) Ver capítulo um, nota 5.
(9) Dessa perspectiva, é também eclesiologicamente ortodoxo falar de "identidade inclusiva", provido que é entendida corretamente como um corolário da "identidade exclusiva" propriamente tomada.
(10) Examinarei abaixo os problemas associados à identificação comum de muitas comunidades eclesiais com a única Igreja de Cristo. Abordo também as diferenças entre as várias formas de predicar da Igreja de Cristo uma ou mais comunidades cristãs (e vice-versa) em termos de “todo,” “partes” ou “qualificações.” Veja especialmente os capítulos um e três.
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